Encontrei esta reportagem por acaso. O que li podia ter sido escrito por mim e por tantas outras famílias... O que eu não compreendo, porque para mim está para além dos limites da compreensão, é como é que se podem CHULAR pais desesperados em terapias que deveriam ser gratuitas. Não entendo porque a Segurança Social e o Estado viram as costas nos momentos de maior necessidade. Não entendo o porquê de complicar algo que para nós pais já é uma tortura. Esta reportagem é de 2009 e no entanto, nada mudou de lá para cá... às vezes tenho mesmo vergonha de ser portuguesa...Ah! E para ser correto, o título deveria ser "Como se SOBREVIVE com um filho autista". Essa sim é a questão que todos têm receio de perguntar...
"Como se vive com um filho autista
Ter um filho autista não é algo que se possa prever. Tendo-o, um mundo desconhecido desaba na cabeça dos pais. A vida sucede-se entre barreiras e dificuldades.
Marco dá um forte esticão. O técnico acompanha-o como
umasombra. Um duplo corpo sobre o menino que foge por entre as árvores.
Aos sete anos, tem um físico maior que a idade. É alto, um touro difícil
de domar. Parece viver num outro mundo - onde os sons não entram. De
regresso à sala do jardim-escola da Trafaria, o rapaz baterá com
violência uma cadeira contra o chão. A pequena Mariana, dois anos e
meio, assusta-se. Cai. Chora. Todos os técnicos se levantam. As outras
crianças seguem serenas. Uma técnica beija e reconforta a menina. Outra
desabafa: - É a primeira vez que a Mariana chora.
Uma reacção é uma festa
Mariana chora! Tem uma resposta, uma reacção. O
incidente já não será uma lembrança da dificuldade em lidar com Marco -
chegado àquela nova sala de Intervenção Terapêutica Intensiva para
Autistas, da ABC Real, em Setembro passado. O choro da minúscula Mariana
é motivo de comemoração. A reacção de uma criança com autismo é sempre
uma festa. Um sinal de que se entrou nesse mundo inacessível, onde
vivem. Que se derrubou mais um tijolo do muro que nos impede tantas
vezes de comunicar.
Fim de intervalo na escola da Trafaria. Cada criança,
das seis que frequentam a sala de terapia segundo o método
norte-americano ABA (Applied Behavioural Analysis/Análise Comportamental
Aplicada), trazido da Califórnia para Portugal por Albertina Marçal, é
acompanhada por um técnico.
Um técnico por criança à mesa de trabalho, um técnico por criança à mesa de refeições, um técnico por criança no intervalo.
Meses antes, no Colégio Campo de Flores, na Caparica,
onde funciona há cerca de um ano a primeira destas salas, onze crianças
pequenas trabalham à frente de uma mesa. É a primeira turma-piloto do
ABA em Portugal. Cada técnico português, formado pelos norte-americanos,
encarrega-se de desenvolver e trabalhar uma das competências que
qualquer outra criança da mesma idade adquire, em regra, sozinha. De 25
em 25 minutos, Marina, responsável pela sala, toca uma sineta. Nesse
momento, cada criança é mudada de mesa, como se trabalhasse numa linha
de produção de uma fábrica. É meio-dia. O trabalho delas começou às oito
da manhã e está a chegar ao fim. Nenhuma, porém, dá sinal de cansaço ou
indisposição.
Pais apanhados de surpresa
Ao contrário do que aconteceria em qualquer outra sala
de aula com crianças da mesma idade, a presença de um estranho, a minha,
não é notada. Ninguém me dirige o olhar ou a fala. Sou uma nuvem
invisível. Na Caparica. Na Trafaria.
Mas, para que estas crianças chegassem aqui, muito teve
de acontecer na vida delas e dos pais. Muito teve de acontecer também
na vida de Albertina Marçal, mãe de um adolescente com síndroma de
Asperger, fundadora da ABC Real Portuguesa e responsável pela
'importação' deste método.
Foi no momento em que Alexandra e Carlos equacionavam a
possibilidade de ter mais um filho que o diagnóstico os apanhou de
surpresa. Há muito que a família os alertava para alguns sinais
perturbadores no comportamento do filho. Tiago tinha pouco mais de dois
anos. Não falava, repetia exaustivamente alguns sons. Ao mesmo tempo
balançava as mãos. Não reagia às conversas dos adultos, mesmo quando a
voz lhe era dirigida. E, apesar disso, era um menino muito meigo.
Primeiros sinais
Durante longo tempo, os pais negaram a possibilidade de
o filho ter algum problema. Comparavam o comportamento de Tiago ao seu
quando crianças. Até o pediatra, um conhecido médico de Lisboa, dizia, a
cada consulta de rotina, que tudo ia bem. Os pais repetiam para si
próprios: "Ele tem muito tempo para falar e para fazer o mesmo que as
outras crianças". A este pensamento juntavam um facto: Tiago tinha
problemas de ouvidos. Uma otite serosa poderia ser a causa do atraso na
fala. O médico otorrino concordava e pedia mais tempo.
Mário Relvas, pai de um autista de 21 anos, diz que o
filho também lhe parecia surdo. Os primeiros testes, porém, consideram
que tem uma audição normal. Aos seis meses, Bruno podia entreter-se
durante horas apenas a olhar para as mãos. Uma obsessão que não passava
despercebida aos pais.
Catarina Lourenço, mãe de Afonso, 9 anos, e Martim, 8
anos - o primeiro com o diagnóstico de autista e o segundo de Asperger -
lembra o que a pediatra então lhe disse: "Não se preocupe. Einstein só
falou aos quatro anos". Afonso também era muito meigo. "Muito calmo. Não
dava trabalho nenhum", lembra a mãe. As suspeitas dos pais de Afonso
começaram quando perceberam que não reagia ao nome. Mas mais uma vez não
se tratava de um caso de surdez. O diagnóstico final só veio muitos
anos depois. Quando a própria mãe, depois de muitas horas passadas na
Internet, decidiu arriscar a pergunta: "Mas é autismo ou não?" Ouviu
finalmente um sim do pedopsiquiatra Pedro Caldeira.
Afonso deveria ter então quatro ou cinco anos. Catarina
diz, porém, que conhece pais a quem lhes foi dito directamente; e que
isso, segundo os próprios lhe contaram, também não lhes fez nada bem.
Afonso era acompanhado no Hospital de Santa Maria,
desde os dois anos, por uma psicóloga. Até aí impunham-se as palavras
"perturbação da comunicação e de relacionamento". Na verdade, os
autistas sofrem disso, mas de tantas outras coisas mais. Cada caso é um
caso; e o espectro da doença é um leque tão vasto que é difícil definir
exactamente o que faz um autista ou não. Uns são meigos, outros
violentos. Uns falam, outros não. As variantes são infinitas. Mas têm
algo em comum; todos erguem barreiras, dificultam a relação com o mundo.
O diagnóstico, por sua vez, não é fácil de conseguir.
Médicos e técnicos têm medo de errar. Porque na verdade também erram,
para o bem e para o mal.
Testes atrás de testes
Os primeiros testes do Tiago, realizados por uma
técnica com experiência, não detectam qualquer problema. Mas as pressões
familiares tornam-se maiores. A mãe muda de pediatra. Volta a repetir
os testes. Por fim, o diagnóstico chega: "O Tiago tem uma perturbação do
espectro de autismo", dirá Rosa Gouveia, pediatra do desenvolvimento,
no Hospital CUF Descobertas.
A resposta a todas as dúvidas não sossega ninguém. Pelo
contrário. Potencia uma avalancha de questões. E desta vez as respostas
são ainda mais difíceis de obter. Se os pais de Tiago, em pleno século
XXI, sentiram muitas dificuldades e incompreensões, Mário e a mulher,
duas décadas antes, tiveram uma luta ainda maior: "Alguns profissionais
de saúde não estão, ainda, devidamente sensibilizados para o autismo",
desabafa Mário Relvas.
Calvário de consultas
Quando Bruno nasceu, os profissionais sabiam ainda
menos. Mas no passado como hoje o processo de compreensão dos pais é
quase sempre um verdadeiro calvário de consultas. Os pais de Tiago
percebem que ele tem de começar a ser tratado. "Mas como?". Ao mesmo
tempo surge outra questão mais íntima, dolorosa e igualmente difícil de
colocar: "Porquê?"
Ao contrário de outras doenças, como a Trissomia 21, o
autismo não é diagnosticável durante a gestação. Dificilmente se
descobre antes dos 18 meses de vida. As causas são multifactoriais, além
de que não se consegue saber exactamente quais os elementos
determinantes para a criação de um espaço propício à emergência do
espectro autista. Os testes genéticos às crianças são importantes. Mas,
de modo algum, indicam o caminho a seguir, a forma como a intervenção
terapêutica deve ser feita. Tiago, Bruno, Afonso fizeram-nos. Nenhum
deles demonstra ter alguma alteração genética, alguma malformação.
Orfãos do Estado e do SNS
Entre as poucas certezas que há em relação à doença, a
principal é a de que, quanto mais cedo houver intervenção terapêutica ao
nível comportamental, melhores são os resultados. Mas nenhum pai está
preparado para o que vem a seguir: um mundo de dificuldades, onde se
sentem órfãos do Estado e do Sistema Nacional de Saúde.
Nesta fase, também não é raro um dos pais começar a
sentir-se um pouco mais culpado, pensando que a carga genética que
transporta é a responsável. Mas no íntimo dos dois tudo é posto em
causa. Mesmo que não o confessem. A esta fase os especialistas chamam
normalmente "luto". E sem o 'luto' cumprido não há como avançar. Ou
seja, é imperioso aceitar a situação. Agir rapidamente.
Alexandra pede uma consulta de avaliação no Hospital da
Estefânia, em Lisboa. Mas a resposta não se afigura imediata. Decide
avançar para o sistema privado (gasta 350 euros). A consulta no hospital
público só chega cerca de um ano depois. Nessa altura, Tiago já tinha
iniciado tratamento. Faz terapia Teacch, outro método norte-americano,
terapia da fala e psicomotricidade, no Centro de Desenvolvimento
Infantil LogicaMentes, fundado por Cláudia Bandeira de Lima, psicóloga
clínica e de desenvolvimento do Hospital de Santa Maria. O programa de
quatro horas semanais de Tiago fica em 485 euros mensais. Os pais não
recebem qualquer subsídio.
Mário diz que a lacuna ao nível de consultas de
diagnóstico do Sistema Nacional de Saúde deixa campo aberto para que
alguns privados monopolizem estas intervenções e as seguintes, ou seja,
já na fase de acompanhamento, desenvolvimento, terapia.
Os pais informados sabem, porém, o quanto urge agir. A
espera pode ter efeitos muito nefastos ao longo de toda a vida do filho;
e os estudos existentes são unânimes em considerar que a eficácia do
tratamento comportamental é muito maior quando aplicado, de modo
intensivo, até aos quatro anos. O cérebro é mais plástico, flexível.
Absorve melhor a aprendizagem. Depois todos os avanços são mais lentos.
É, de resto, por essa razão que a grande batalha científica nesta área
está em encontrar métodos de diagnóstico que possam ser fiáveis na mais
tenra idade.
Autismo é prioridade para Obama
Barack Obama, presidente dos Estados Unidos, não é, de
resto, alheio a este problema. Tornou o autismo uma prioridade na saúde
infantil, e adjudicou 5 mil milhões de dólares à investigação nesta
área, faz agora um mês. Os norte-americanos já gastam cerca de 60 mil
milhões de dólares por ano nesta doença. Com o crescimento exponencial
do número de afectados, que os estudos apontam como certo, julga-se que
dentro de dez anos este valor andará entre 200 e 400 mil milhões de
dólares. Aquilo que começa a parecer uma epidemia (não apenas
norte-americana, embora as estatísticas deste país sejam as mais antigas
e fiáveis) é também uma hecatombe económica.
Na fase de 'luto' dos pais deveria iniciar-se a ajuda
psicológica. Raramente, porém, são encaminhados para serviços de
psicologia pelos técnicos com quem se vão cruzando. Ou decidem avançar
por meios próprios, pedindo ajuda ao médico de família, ou se entregam à
dor e à alienação, mesmo que ainda não tenham presentes algumas das
consequências da doença ao longo da vida. Têm de reaprender a lidar com o
filho e com os sentimentos.
Famílias divididas
Catarina teve a sorte de ser acompanhada no próprio
Hospital de Santa Maria. Alexandra desabafou com a médica de família. Em
troca recebeu antidepressivos. Há também quem enfie a cabeça na areia
numa tentativa de minimizar a importância da doença do filho. Muitos
pais ouvem ainda o que não gostam, mesmo dos familiares ou dos técnicos.
Não raras vezes, as famílias dividem-se. Todos têm opiniões, mesmo
quando não fizeram nenhum esforço para se informar. O isolamento cresce.
O muro é cada vez mais alto. E se os técnicos em geral recusam a ideia
de muro, pais como Catarina não têm problema nenhum em assumi-lo. "A
minha vida mudou a nível pessoal, social, profissional. É muito duro
lidar com tudo isto. Se não encararmos o muro, nunca o vamos resolver.
Estou farta do politicamente correcto", desabafa.
Catarina é bailarina da Companhia Nacional de Bailado
(CNB). Quando se preparava para estudar outra vez e escolher uma nova
profissão - consciente de que a vida de uma bailarina tem 'prazo de
validade' -, descobriu que tinha um filho autista. O terceiro filho,
Martim, também exigiria tratamento. É Asperger. A sua vida é um
colete-de-forças. Não é fácil conciliar os seus horários profissionais e
os do marido, seu colega na CNB, com as terapias dos miúdos.
No caso de Tiago, um dos primeiros embates ocorreu na
escola, um colégio privado, onde inicialmente todos quiseram ajudar. A
polémica surgiria a propósito de um pormenor. Na sala havia um espelho. O
espelho provocava-lhe um comportamento repetitivo, uma estereotipia,
que se não for correctamente contrariada agrava o autismo. Numa reunião,
a mãe e a psicóloga que acompanha a criança pedem à directora da escola
e ao psicólogo do colégio para retirarem o espelho. "Tem de se habituar
como os outros meninos", foi a resposta taxativa. A psicóloga e a mãe
ainda contrapõem: "Mas isso é como pedir a um paraplégico que deixe a
cadeira de rodas e ande".
A escola não recua. A mãe ainda ouve: "Já sabemos que
ele não vai ser engenheiro profissão do pai, mas ao menos gostaríamos
que ele fosse autónomo".
Trabalho a tempo inteiro
A ignorância é democrática. E nem os técnicos de
educação escapam. Mário, por exemplo, diz que teve muitos problemas a
nível profissional, nomeadamente na altura em que era polícia.
Um ano depois do diagnóstico, surge a separação dos
pais de Tiago. A situação tornara-se insustentável. Mais uma vez, como
em quase toda esta história, os pais de Tiago cumprem estatísticas. "Um
autista prende 24 horas sobre 24. Por isso, o cansaço surge e a
incompreensão que nos afecta gera algum mal-estar", reconhece Mário.
Catarina e Mário, o pai de Afonso e Martim, continuam
juntos após 14 anos de vida em comum. "Somos teimosos", diz Catarina.
Albertina e o marido sobreviveram a tudo, mas Albertina não esconde:
"Estamos cansados. Ser pai de uma criança destas é um trabalho a tempo
inteiro, e isso é reconhecido nos Estados Unidos. Mário, que ainda hoje
está casado, confirma que é difícil preservar o casamento: "Deixámos de
ter tempo para nós como casal. Não podemos sair à noite, ir jantar fora,
não podemos ter um momento para nós".
Os autistas exigem uma rotina muito disciplinada, e
podem ser muito exclusivos nas relações. Delas dependem de uma forma
extrema. Mário lembra o caso de um filho adulto que morreu apenas
algumas semanas depois do pai ter sido internado num hospital.
O importante é não desistir
No caso de Bruno, é a mãe que costuma ir buscá-lo à
escola desde pequenino: "Se for eu, tenho de o entreter até a mãe chegar
a casa, caso contrário gera-se um mal-estar nele que o leva a ficar
perturbado e a ter uma alteração radical no comportamento", conta Mário.
Ir a um supermercado, centro comercial ou a um
restaurante pode ser um dos maiores desafios para os pais do Bruno. Mas
ainda assim não desistem. Quando o conseguem, Mário publica a
'reportagem' no seu blogue. Cada
passo é conquistado dia-a-dia. Em adultos, a perturbação é mais difícil
de controlar: "Passam a ser adultos com força e voz grossa... e já não
são aquelas criancinhas de quem os estranhos diziam 'mal-educados,
fazia-lhes falta era um par de tabefes'", continua Mário.
Catarina está a sentir essa fase no filho. "Ontem,
partiu a porta da máquina de lavar roupa, queria voltar a vestir a mesma
roupa, que eu já tinha posto para lavar". Mudaram o professor de Afonso
na escola pública que frequentava. "Ainda fizemos um abaixo-assinado...
A referência dele na sala era o professor. Desde o início das aulas que
grita todos os dias antes de sair de casa e atira-se para o chão". Não é
duro só para ela e para o pai. A irmã mais velha de Afonso, Filipa, tem
14 anos e não escapa ao stresse de que todos sofrem na família.
"A minha filha pensa muito e pensa que, quando for
grande, também pode ter um filho assim", continua Catarina. Na altura em
que os pais de Tiago se separam, as despesas com o tratamento do filho
já representam uma fatia significativa no orçamento familiar. Agora, só
em terapias, Tiago custa 800 euros por mês, fora os 430 euros de colégio
normal. Até ao momento não tem qualquer subsídio. No ABA, cada criança
fica por mil euros/mês, sendo que a ABC Real conta com salas cedidas por
instituições e que o pagamento de cada criança se esgota no salário de
um técnico e nos materiais. Afonso e Martim pesam 900 euros por mês.
Quanto a Bruno, continua dependente dos pais aos 21 anos. Mário diz não
saber o que vai ser de Bruno se alguma coisa lhes acontecer.
"Vivemos com uma espada sobre a cabeça", desabafa Mário. Na voz triste percebe-se que está cansadode lutar.
Rita Costa, a professora de natação de Afonso (passou
um ano com ele aos gritos dentro da piscina até ele aprender a nadar) e
também terapeuta de psicomotricidade do Tiago recorda uma história muito
triste: "Conheci uma mãe a quem um homeopata convenceu que iria pôr o
filho a falar. Gastou imenso dinheiro. Fez imensas viagens. Mas o miúdo
nunca falou. Um dia decidiu ter o segundo filho. Dizia que não aguentava
a ideia de ter um filho que não lhe chamasse mãe".
(...)
in http://expresso.sapo.pt/como-se-vive-com-um-filho-autista=f544548